FARMÁCIA E COSMOLOGIA: A ETNOBOTÂNICA DO CANDOMBLÉ NA BAHIA.

 

Ordep José Serra Trindade ,

Departamento de Antropologia-Faculdade de Fisolosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia

Fabio Pedro Bandeira

Dept. de Ciências Biológicas, Universidade Estadual de Feira de Santana

Jussara Cristina Rêgo

Mestrado em Geografia, Universidade Federal da Bahia

José Lucas Sobrinho

Leonardo Marques Pacheco

Maíra Mercês Barreto

 

ABSTRACT:

COSMOLOGY AND PHARMACY: THE ETHNOBOTANIC OF CANDOMBLE IN BAHIA. This article is intended to explain the cosmological background of the ethnobotanics and more specifically of the ethno-pharmacobotanics of the candomble communities in Bahia, Brazil. Candomble is an African-Brazilian mystic and enthusiastic rite, the cult of the orixa gods and of the ancestors of their devotees. One of the most important goals of the candomble religious practices is the obtention and maintenance of spiritual and physical health: therapeutic strategies are an importan element of its rites. In the candomble cult ethnobotanic knowledge has an important place, since vegetals are commonly used in the rites with properly lithurgical (symbolic) functions, and/or medical aims. Ascription of plants to the orixa-gods provides a means of classification, and cosmological ideas embedded in the initiatory rites can be loked at as a key to the understanding of candomble ethnopharmacology and ethnobotanics.

 

 

RESUMO:

FARMÁCIA E COSMOLOGIA: A ETNOBOTÂNICA DO CANDOMBLÉ NA BAHIA. Este artículo pretende explicar a cosmologia dos etnobotânicos e mais especificamente dos etno-farmacobotânicos das comunidades de candomblé na Bahia, Brasil. Candomblé é um rito místico e entusiástico afro-brasileiro, o culto dos deuses - orixás e dos ancestrais de seus devotos. Um dos objetivos mais importantes das práticas rituais do candomblé é a obtenção e manutenção da saúde física e espiritual: estratégias terapêuticas que sao um elemento importante de seus ritos. No culto do candomblé o conhecimento etnobotânco tem um lugar importante, desse modo os vegetais são usados comumente nos ritos com funçoes propriamente litúrgicas (simbólicas), e/ou fins médicos. Asignação de plantas para os deuses-orixás provê um meio de classificação, e as idéias cosmológicas envolvidas nos ritos iniciáticos podem ser vistas como uma chave para a compreensão da etno-farmacologia e etnobotânica do candomblé.

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Com base na análise de dados colhidos na Pesquisa Ossain, faremos sumária apresentação de um sistema etnocientífico, indicando brevemente elementos fundamentais de sua estruturação. O sistema em apreço vem a ser o da etnobotânica do candomblé nagô da Bahia. Os grupos de culto estudados na Pesquisa Ossain têm sede em Salvador, contando-se entre os mais influentes desta capital.

O termo candomblé hoje designa uma variedade de ritos, (re)criados no Brasil por africanos e seus descendentes, no contexto de amplos contactos interétnicos, mas com forte ponderação de elementos dos Kultbildern de povos da costa ocidental africana, falantes de iorubá e de línguas fon. Prevalece um modelo de organização religiosa que se volta para o culto dos Orixás e se inspira na tradição nagô.

O candomblé é um culto entusiástico em que, através do transe e da possessão, certos iniciados encarnam os espíritos invocados. Estes são também propiciados com sacrifícios e oferendas diversas, e podem ainda comunicar-se com os humanos através do código ritual de um jogo divinatório (Ifá). A lógica do sistema etnobotânico do candomblé nagô tem fundamento num culto que associa à prática religiosa um esforço terapêutico, voltado para a restauração, conservação ou promoção da saúde e do bem estar dos iniciados, adeptos e clientes. Nesse contexto, tem papel de destaque uma liturgia das folhas, itens vegetais que funcionam como elementos de um código sacramental e como fármacos. A classificação das folhas só pode compreender-se à luz de referências a uma ordem mais abrangente. Para elucidá-la, há que fazer referência às bases religiosas do sistema.

De acordo com a visão de mundo nagô, há um Deus supremo transcendente ao universo (Olorun, Olodumaré), Senhor dos poderes que originaram e asseguram todas as formas de existência. Olorun é considerado o dispensador do axé , ou seja, da força vital que mantém e renova a criação, e que Ele transmite através dos Orixás. O universo nagô comporta duas dimensões opostas, chamadas de orun e ayê. O orun é a dimensão eterna, em cujo ápice está Deus: o nome Olorun significa "Senhor do orun". Aí têm sede os Orixás criados por Ele, e encontram-se os arquétipos eternos de tudo quanto existe. O ayê vem a ser o mundo físico, onde se acham os seres vivos. Dizem vários mitos que Olorun delegou a seu filho, Oxalá (Orixalá, "o grande orixá"), a criação do mundo físico, que entregou a seus cuidados.

No candomblé fala-se também de uma divisão do cosmo em nove espaços, que o poder de Orixalá intercomunica; e afirma-se que os Orixás se distribuem, no orun, em domínios diferentes: a distinção de orixá funfun e e eborá implica numa repartição cósmica, que recorta aquela dimensão do universo. Nas representações mítico-rituais, essa repartição cifra-se em termos de uma oposição direita x esquerda, ou alto x baixo.

Os mortos, assim como os Orixás , também são chamados de arà orun... Contudo distingue-se enfaticamente o domínio que os cinge do domínio dos irunmalé. O culto nagô divide-se em duas esferas, conforme se dirija aos divinos ou aos mortos. Os que são preparados (iniciados) para encarnar as divindades, não podem, de maneira alguma, receber os antepassados, e vice-versa. Distinguem-se, pois, dois tipos básicos de organização religiosa, no horizonte do candomblé: há terreiros lessé orixá (a maioria absoluta) e terreiros lessé egun (bem poucos). Mesmo nos terreiros lessé orixá, os egun (os finados) são cultuados, embora "em segundo plano": em todo egbé há um santuário dedicado aos mortos da comunidade, onde os feitos já falecidos são propiciados coletivamente, com oferendas, orações e sacrifícios. Apenas pessoas especialmente preparadas, e com longo de tempo de iniciação, podem penetrar num santuário desses, para cumprir os ritos devidos. Essas propiciações devem realizar-se de forma discreta, à parte da liturgia dos Orixás, com grandes cuidados para não "contaminá-la". No sistema religioso do candomblé, tem uma grande importância a oposição entre Orixá e Egun, isto é, entre os divinos e os mortos. Malgrado isso, há Orixás que se relacionam de maneira próxima com o domínio da morte. O próprio Oxalá se acha neste caso, pois tem a morte e a vida sob seu comando... Por sinal, na Iorubalândia Ikú (Morte) é um eborá; mas na Bahia, fala-se que "Babá Iku é um tipo de Oxalá". Nanã, uma das esposas de Oxalá, identificada com a terra, abriga no seu ventre fértil as sementes da vida...e também os defuntos. Conta-se que seu filho Obaluayê, o senhor das moléstias, foi o primeiro dos mortos, tendo ressucitado e alcançado assim a condição divina. A deusa Oiá, em um de seus aspectos, é considerada Rainha de Bale, isto é, da "terra dos mortos". Ogun, o deus guerreiro, conhecedor dos metais que funde na sua forja, é também relacionado com esse domínio por conta de sua intimidade com as entranhas da terra, donde extrai o ferro... Por fim, Exu, que está presente em todas as passagens, é igualmente capaz de entrar em comunicação com os mortos.

De acordo com os religiosos do candomblé, assim como os Orixás estão acima dos eguns, Deus está acima dos Orixás. Olorun é o pai de Oxalá, porém não se confunde com ele.

Oxalá vem a ser o pai dos Orixás. Mas um mito nagô explica que sua cor é o branco porque nela todas as outras se confundem, assim como Oxalá é a reunião do todos os seus filhos divinos — identificados, nos ritos, por cores diferentes. Nesse aspecto, Oxalá opõe-se a Exu, pois diz-se que cada orixá tem seu Exu particular... Ou seja, os Orixás "juntam-se" em Oxalá, mas também compartem Exu, que se divide entre eles, de certa forma a individualizá-los. Conta-se ainda nos terreiros baianos um mito segundo o qual Ifá dividiu Exu (Yangí) em muitos pedaços, perseguindo-o por todas as partes do universo, que ele (Exu) assim se tornou capaz de intercomunicar... Exu destaca-se no conjunto dos Irunmalé de forma decisiva. Opõe-se a Oxalá como fator de divisão e separação. Em mitos cosmogônicos, aparece perturbando o Criador e modificando sua obra... Enquanto Oxalá afirma a harmonia e o equilíbrio, Exu promove o desequilíbrio que gera o movimento, a mudança que desordena e dinamiza, tira as coisas do lugar, abre novos espaços, torna necessárias as mudanças.

Religiosos do rito nagô afirmam que no candomblé, a gente recorre a Orixá, a Egun, a Exu..." Isso indica claramente que Exu se destaca muito dos outros divinos. Cabe-lhe o direito às primícias, e a dedicação dos "ritos prioritários (cf. Elbein dos Santos, 1975). É o mensageiro que intercomunica os diferentes domínios do cosmo, o portador dos oblatos, o deus que preside às passagens.

Oxalá tem uma importância decisiva nos mitos cosmogônicos. O campo semântico assinalado pelo nome dessa divindade indica um complexo simbólico, e pode também ser empregado para designar elementos desse mesmo complexo. Oxalá é ao mesmo tempo Obatalá e Odudua: é a união deles; mas tanto Obatalá como Odudua podem "individualmente" ser chamados de Oxalá. Obatalá é o senhor do céu, que de certo modo o rerpresenta; a Odudua corresponde a terra, seu domínio. O luminoso Obatalá, concebido como masculino, está unido a Odudua — imaginada escura, cega, feminina. Diz-se, pois, que Oxalá tem os dois sexos. Ele constitui um par... que pode também decompor-se de outro modo: por exemplo, em Oxalufã, o Velho, e Oxaguian, o Moço, que são ambos o mesmo Oxalá... Há ainda mitos que opõem Obatalá e Odudua como senior e junior, e lhes atribuem papéis complementares na criação... Porém a criação, nesses mitos cosmogônicos, quase sempre sofre a intervenção perturbadora de um terceiro, Exu. Pode-se dizer que Oxalá e Exu se correspondem como par e ímpar, equilíbrio e desequilíbrio, inércia e movimento, ordem e desordem etc. O mesmo papel "desequilibrador" e movimentador tem Exu no sistema da geomancia, ou seja, na sua relação com Ifá. Ora, o Weltbild de Ifá re-presenta o modelo da criação: assim Ifá "reflete" Orixalá...

 

Quando se estuda a cosmologia nagô, o primeiro dado que salta à vista é a organização dual, que ordena, aparentemente, todo o universo através do confronto de pares de opostos, em esquemas binários. O primeiro impulso é o de resumir a esta configuração a estrutura do sistema, caracterizando-o como simplesmente dualista. Mas seria um equívoco. A oposição "contrapolar" de campos e sua replicação (em arranjos quadrúplices etc) vêm a ser procedimentos fundamentais na gramática do sistema nagô, tanto na construção dos modelos de realidade que concernem à cosmogonia e à mântica, por exemplo, quanto no domínio dos arranjos taxionômicos que também compõem esta cosmo-lógica. Mas quando se passa ao campo das taxionomias, logo se vê que o esquema binário resulta insuficiente. Nos discursos "cosmológicos" das comunidades do candomblé nagô, os arranjos diádicos freqüentemente encobrem outros, em tríades. Uma confirmação disto se acha na contínua e explícita referência à divisão do orun — ou do universo todo, como também se afirma — em nove partes. Os nove espaços do cosmo envolvem o mundo físico, de acordo com a cosmovisão dos nagôs: segundo uma explanação bem conhecida, trata-se, na verdade, de dois conjuntos de quatro espaços (um conjunto superior, e o outro inferior à terra), mais um intermediário, o qual, penetrando-o, conecta os dois outros com o ayê (mundo físico). Pode-se verificar que não existe contradição efetiva entre essa representação e os esquemas que recorrem a divisão binária (simples ou quadripartite) do mundo, ou de sua dimensão "superior": a enéade é uma forma lógica de articulação de um esquema diádico com um arranjo triádico: por exemplo, na base de uma composição 4 - 1 - 4, como na "cosmografia" evocada.

É possível encontrar a confirmação do valor fundamental da tríade em muitos discursos míticos e rituais correntes no mundo do camdomblé. Nos enunciados (teo)cosmológicos da religião nagô, um conjunto representado como binário pode exigir a operação lógica de três campos de representação, ou conceptualização: assim, a oposição de orun e ayê (ou, no ayê, de céu x terra) remete à oposição de Obatalá e Odudua; no entanto, esta oposição se confronta de imediato com a afirmação de uma unidade que a transcende (Oxalá = Obatalá e Odudua).

Há outras vias que conduzem logicamente ao arranjo triádico no sistema. A oposição constantemente feita entre Oxalá e Exu traduz-se (também) na oposição par x ímpar. Ora, considerada de um ponto de vista lógico, esta oposição, que em princípio se diz em linguagem binária (P x I), encerra em si mesma a potência da tríade.

Em mitos cosmogônicos nagôs ainda hoje relatados em terreiros baianos, Exu interfere na obra do criador criando disparidades, desequilíbrios, desarranjos, de maneira a gerar mudança e movimento. Da mesma maneira, no jogo de Ifá, que traduz em outros termos a cosmologia, a participação do deus Exu é decisiva, embora o sistema seja construído em bases que parecem excluir o ímpar, por ele encarnado: baseia-se o jogo na operação de dezesseis sinais, compondo 256 permutações possíveis; mas um outro signo, que corresponde justamente a Exu, vem incorporar-se ao esquema de base quádrupla, sendo ao mesmo tempo integrado e isolado como o "vigia", um adido indispensável. O signo de Exu representa, no universo lógico do Ifá, o acidente, a irrupção do acaso. Trata-se de uma função indispensável, como se vê: todo jogo divinatório lida com as interrelações de acaso e necessidade.

Neste ponto, toca-se uma característica notável do pensamento do sistema nagô. Trata-se de uma afirmação axiológica que se combina à linguagem explicativa no traçado da cosmologia. O sistema destaca o par, associado com os valores da ordem, do equilíbrio; muitas vezes elude o ímpar, associado com o desequilíbrio, a liminariedade, a passagem, a desordem, a impureza, as contingências perigosas da transformação. Esse postulado axiológico leva ao relativo encobrimento de esquemas triádicos fundamentais na ideologia em estudo. Mas há instâncias em que os esquemas triádicos são aí privilegiados. Em grandes terreiros nagôs da Bahia, afirma-se que "o candomblé também tem uma Santíssima Trindade", composta (segundo a fórmula mais comum), por Obatalá, Odudua e Ifá. Ora, Ifá, que nesse enunciado aparece como um terceiro, forma um conjunto análogo ao representa do por Obatalá + Odudua (=Oxalá); pois Ifá corresponde ao universo dos signos odu, que "recapitula", no jogo divinatório, um conjunto par de Orixás, um totum divino representado em outros contextos mítico-rituais por Oxalá. Ifá e Oxalá se equivalem, ainda que em diferentes "campos". Note-se ainda uma coisa: Ifá relaciona-se com Exu do mesmo modo que Oxalá.

Existe mais um enunciado litúrgico-teológico no candomblé que evoca uma fórmula trinitária: certas invocações ligam Obatalá, Odudua e Ogun. Uma grande sacerdotiza explicou-nos que "Obatalá e Odudua encaminham tudo através de Ogun." Ogun figura também em mitos cosmogônicos: foi o primeiro dos Orixás a baixar à terra, descendo do céu por uma corrente de ferro (ou sob a forma de aranha, pendente do próprio fio): assim trouxe os outros divinos ao ayê. Ogun abre caminho para os demais Orixás. Ora, vários traços aproximam Ogun de Exu — que, como ele, é um senhor das estradas, e precede as outras divindades em momentos decisivos, franqueando-lhes o acesso ao mundo dos homens. Exu inspira temor pela sua violência, porque suscita disputas e crises; Ogun é o senhor da guerra. Os dois são divindades de características fálicas, são deuses agressivos e criadores. Têm ambos simultaneamente o poder de romper e de ligar. Há mesmo uma divindade que os funde: o Exu/Ogun, também chamado Ogun Xoroquê. Associado diretamente com Obatalá e Odudua em mitos e ritos diversos, nesses contextos Ogun representa o mesmo que Exu.

Ogun está intimamente relacionado com um número ímpar, o sete, que tem uma grande importância cosmológica no sistema. Uma das epicleses desse deus vem a ser Mejejê, "Sétuplo"... Ora, tanto quanto a enéade, o arranjo de um conjunto de sete elementos permite uma combinação do esquema diádico com o da tríade, pois dá lugar a um modelo em que dois subconjuntos de três elementos se revelam simétricos, distribuídos desde o eixo de um conjunto unitário: a díade é assim realizada no segundo nível da configuração, e de um modo que torna necessária a remissão a uma unidade; por outro lado, é evidente que assim se sugere ainda uma divisão progressiva em pares, no esquema de um alinhamento descendente, "em árvore":

 

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Trata-se de uma configuração muito adequada para os arranjos taxonômicos.

Na cosmologia nagô são utilizadas como alternativas equivalentes, ou esquemas passíveis de combinar-se, a divisão estrutural em nove e em sete.

Um mito nagô muito conhecido na Bahia permite captar a correspondência profunda entre o arranjo setenário e a enéade, embora comece por uma oposição de metades de um cosmo (social): ele tem a ver com a distribuição de poderes na sociedade humana, entre seus componentes separados pela divisão elementar dos sexos: fala de uma disputa entre homens e mulheres. Conta que no começo as mulheres dominavam os homens, pois tinham o segredo de ritos de mistério. Eram chefiadas por Oiá, uma deusa guerreira. O poder das mulheres foi contestado por Ogun, que duelou com Oiá. No duelo, a deusa dividiu Ogun em sete pedaços, e ele a dividiu em nove. A vitória de Ogun determinou a supremacia masculina no mundo humano. Oiá é mais conhecida no Brasil por uma epiclese que refere a sua divisão: Iansã [(>*Iya Mesan), a "Senhora Novena"]. Ela está associada com uma passagem crucial, visto como é considerada uma Soberana dos Mortos, ao mesmo tempo em que recebe o título de Grande Mãe (Iya Nlá), com poderes sobre o domínio da fecundidade e da vida. Enquanto senhora dos mortos, Oiá tem a ver com as profundezas da terra; mas governa também a ventania ( ar), e rege águas caudalosas (o Níger lhe é consagrado); por fim, com seu esposo, Xangô , ela comparte o fogo... Em suma, ela tem uma feição "cósmica". Isso a qualifica para assumir, no contexto da "cosmogonia social", um papel decisivo, exprimindo, na oposição a outro "termo" divino, a situação de um todo em crise; e Ogun está apto a figurar no mesmo nível em vista de sua próxima relação com Oxalá "dividido".Acresce que Ogun e Oyá em muitas circunstâncias míticas e rituais, figuram protótipos do masculino e do feminino... Em conclusão, o mito do duelo de Ogun e Oyá os opõe, no universo humano, assim como Odudua e Obatalá vêm a ser opostos no horizonte do macrocosmo. Esse mito indica também a possibilidade de representar a diacosmese segundo dois esquemas, opõe e relaciona diferentes figuras do mundo. Embora assinale a vitória do Sétuplo, não exclui a figura oposta. O predomínio não significa exclusão: afirma-se num contexto em que também a complementariedade se faz valer.

 

O sistema etnobotânico nagô organiza o universo vegetal de acordo com uma estrutura em que é dado grande destaque a uma divisão em sete campos. O modelo, no plano mais decisivo, combina a oposição binária com arranjos triádicos, organizando díades em pontos (lógicos) simétricos, a partir de um eixo que lhes serve de referência. Os sete campos (taxonômicos) destacados como "principais" no modelo mais simples do euê jokó (liturgia das folhas) distinguem-se através da operação de classificadores que correspondem a distintos Orixás; mas o conjunto no qual se destaca essa estrutura remete a uma representação do universo que o mostra repartido em nove domínios. O modelo litúrgico do euê jokó pode mesmo ser desdobrado numa configuração em que (como o sistema divinatório de Ifá), consta de dezesseis símbolos (Orixás + vegetais associados). Neste caso, evidentemente, a célula do setenário é ampliada com a inclusão de um conjunto eneádico.

 

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Do ponto de vista da análise do sistema, os Orixás vêm a ser símbolos empregados no processo de classificação. Mas dá-se que eles transcendem o campo da taxonomia estudada, pois se aplicam também a outras. São símbolos complexos não só por isso, mas também porque seu valor semântico admite uma variação lógica, desde quando se podem ordenar em diferentes conjuntos... e porque cada um deles representa um conjunto de per si: de acordo com a teologia do candomblé, Xangô (o teônimo Xangô), por exemplo, tanto designa um deus "individualizado" no horizonte de determinados mitos ou liturgias, quanto uma classe divina: o povo do candomblé diz que "há muitas qualidades de Xangô". De acordo com o contexto mítico-ritual, o alcance desses símbolos pode ser modificado. Isso tem a ver com a variação dos mitos, mas também com a diferenciação das estruturas que eles são chamados a descrever, e que obriga a alterar-lhes (em alguma medida) a sintaxe hierárquica. Um (signo-)orixá pode ter, num determinado contexto, uma função equivalente à desempenhada por outro da mesma natureza num contexto diverso: isto permite fazer entre eles uma associação passível de desdobrar-se em vários níveis, ligando também, por homologias, os planos considerados nos contextos distintos. Isso faculta variações enriquecedoras na construção do modelo mítico do universo. Às vezes, substituições dessa ordem são claramente indicadas no discurso mítico.

 

Na articulação entre o sistema da mântica e o da etnobotânica do candomblé, a homologia é estabelecida de diversos modos. A forma da geomancia de Ifá que prevaleceu no Brasil corresponde ao chamado "jogo de búzios", em que as divindades são consultadas através de lances feitos com cauris. Este jogo é considerado "invenção de Ifá", mas ao mesmo tempo conta-se aqui que ele "pertence a Oxum". Um mito corrente nos terreiros baianos diz que Exu apropriou-se da invenção de Ifá, porém não reteve a exclusividade dessa arte... não só porque ainda se reconhece a prerrogativa do inventor, como também por um outro motivo: a divina sedutora Oxum o tomou de Exu, e tornou-se senhora desta forma de adivinhação. Nessa função, enquanto "senhora da arte dos búzios", ela se faz equivalente a Ifá. Ora, há mitos e representações que mostram Oxum muito associada a Oxalá: é sua filha dileta, com que ele se identifica. Oxalá em certos contextos mítico-rituais simboliza o todo divino, e figura o universo; mas em outros contextos ele tem ainda uma função particular: relaciona-se de forma direta com o domínio das águas do céu. Justo neste ponto ele coincide com Oxum, que tem o domínio das águas doces (dos rios, da chuva). Ela está assim qualificada para representar Oxalá, em diversas instâncias. E tem um papel análogo no âmbito do sistema de Ossain, na liturgia das folhas.

 

Muitos vegetais cultivados têm um emprego sacro no candomblé, pois este culto compreende, entre outras formas de oblação, a dedicação de oferendas alimentares, sistematicamente produzidas através de um código culinário em que se combina a preparação de vítimas de sacrifício com a de pratos à base de plantas domesticadas. Mas existe um outro sistema fundamental, indispensável ao funcionamento do culto: a liturgia das folhas, que envolve o emprego de vegetais colhidos em área não cultivada. Os religiosos dos terreiros afirmam "sem folha não tem orixá... Sem Ossain não se faz nada no candomblé."

O sistema litúrgico que leva o nome do deus Ossain tem o mesmo alcance cosmológico que o modelo da mântica de Ifá e que os grandes mitos de criação. A "arte de Ifá" e a "arte de Ossain" constituem dois pilares básicos do culto dos Orixás. Como na liturgia e na farmacopéia tradicional nagô são as folhas as partes dos organismos vegetais mais sistematicamente empregadas, o nome "folha" veio a usar-se nos terreiros como equivalente de "vegetal". A clave básica da etnobotânica, ou melhor, da etnofarmacobotânica nagô, se encontra na liturgia das folhas. Esta encerra também uma representação do cosmo.

 

Os seguidores do candomblé afirmam que cada orixá tem suas folhas. Os Orixás são geralmente considerados inumeráveis, embora um número limitado receba um culto regular nos terreiros. O panteon básico alinha dezesseis divindades, além de Exu : Oxalá, Iemanjá, Nanã, Obaluaiê (Omolu), Oxumaré, Xangô, Oiá (Iansan), Obá, Oxum, Oxossi, Logunedé, Ogun, Euá, Ibeji, Iroko, Ossain. Mesmo entre esses deuses principais, não são todos os que se vêem referidos quando se trata de uma explanação da estrutura básica do sistema de Ossain (do sistema dos fármacos botânicos do candomblé). Essa explanação geralmente toma por base sete grupos divinos, a que se relacionam as folhas consideradas "de maior importância" na liturgia do euê jokó, uma liturgia realizada no contexto dos ritos iniciáticos. Na forma expandida, o cânon fixo do euê jokó chega a ter dezesseis elementos. A ordem semiológica deste cânon traduz a estrutura do sistema etnofarmacobotânico do candomblé. Para os fins aqui visados, basta a consideração do modelo "canônico" mais simples: o que agrupa sete folhas.

O conjunto é ordenado segundo relações hierárquicas. Nele, uma folha opera como dominante: o akokô (Newbouldia laevis Seem.), de Xangô. As outras formam com esta uma "constelação" em que têm posições (lógicas) significativas, distribuindo-se a partir do mesmo eixo. A posição eminente que tem a folha de Xangô explica-se por dois motivos. Primeiro, este orixá é considerado o rei por antonomásia, e seus símbolos conotam supremacia: o akokô (Newbouldia laevis Seem.), um de seus mais importantes símbolos vegetais, é uma folha associada com a boa fortuna, o sucesso, a pujança. Por outro lado, Xangô é um orixá que repele a morte. Numa liturgia que se preocupa em dar nova vida, a centralidade da afirmação de Xangô justifica-se bem.

Associam-se diretamente com o akokô (Newbouldia laevis Seem.), o orirí (Piperomia pellucida L. Kunth) (de Oxum e Xangô) e duas folhas de Oxum: o euê-pepé (Spilanthes acmella (L.) Murr.) e o semi-semi (Scoparia dulcis L.). O orirí (Piperomia pellucida L. Kunth) mostra associados dois Orixás que os mitos caracterizam como esposos e protagonistas de papéis vitais, embora eles representem domínios opostos: "Quem diz Xangô diz fogo; quem diz Oxum, diz água". O orirí (Piperomia pellucida L. Kunth) é recomendado, do ponto de vista terapêutico, para a cura de doenças do coração e dos olhos: atribui-se a Xangô poder sobre o coração (e o sangue), mas a Oxum (especialmente Oxum Apará) se adscreve o cuidado das vistas. Entende-se bem que essa planta esteja relacionada às duas divindades...

A associação de akokô (Newbouldia laevis Seem.), orirí (Piperomia pellucida L. Kunth) e semi-semi (Scoparia dulcis L.) num arranjo que os combina entre si e com outros elementos, faz pensar numa progressão, na qual o orirí (Piperomia pellucida L. Kunth) figuraria como um termo conectivo, mediando a oposição dos signos elementares Xangô, Oxum e de seus "significantes" vegetais. A progressão poderia ler-se como uma sequência

 

Fogo -- Água/Fogo -- Água

 

Evidentemente, fogo e água têm aí um valor de princípios, de arkhaí. Ora, Xangô simboliza o fogo celeste, portanto também a luz. A etnobiologia nagô destaca a operação dos princípios luz/fogo, de um lado, e água , do outro, como elementos decisivos na organização do mundo vegetal. Mas a água prevalece no binário, e em todo o quadro: não se pode deixar de advertir que quase todas as folhas deste conjunto litúrgico (com a exceção única do akokô(Newbouldia laevis Seem.), se adscrevem a Oxum, seja isoladamente (semi-semi (Scoparia dulcis L.), euê-pepê(Spilanthes acmella (L.) Murr.)), seja em combinação com outro orixá: Oxum e Oxalá, no caso do macaçá (Aeolanthus suaveolens Spreng.); Oxum e Ogun, no caso do euê-obó (Periploca nigrescens Afzel); Oxum e Oxossi, no caso do afefé (Trema micrantha (L.) Engler).

A ligação de Oxum com Oxalá é bem conhecida, e já foi assinalada aqui. Deve-se esclarecer que diversos mitos a mostram associada a Oxossi. Narra-se mesmo que Oxum teve com Oxossi um filho divino, Logunedé... Adiante se verá a importância cosmológica deste mito, que se reflete de maneira muito significativa no plano da etnofarmacobotânica em estudo.

Oxum e Ogum também se associam na definição de um campo semântico que corresponde à identificação de uma folha (euê-obó (Periploca nigrescens Afzel)) do conjunto litúrgico estudado. Neste caso, Ogum figura como símbolo de um domínio contrapolar ao designado por Oxalá/Oxum, e passível ainda de contraste com o domínio de Xangô. No mesmo sentido, e com valor análogo, encontra-se Oxossi ligado a Oxum na identificação do valor litúrgico do afefé (Trema micrantha (L.) Engler).

Observe-se o conjunto:

 

 

Em outros termos, esse conjunto corresponde a:

 

Para tornar mais compreensível a organização lógica deste quadro fazem-se necessários ainda alguns esclarecimentos. Euê-obó (Periploca nigrescens Afzel) e afefé (Trema micrantha (L.) Engler), de certo modo, formam parelha. Elas se aproximam na medida em que Ogum e Oxossi são divindades muito próximas, ambos considerados guerreiros, caçadores, habitantes das florestas, e sua associação com Oxum se dá de modos semelhantes. Caso se tome como referência o domínio de Xangô, Oxossi representa um outro polo; e é o que também acontece quando se opõe ao mesmo referencial o campo assinalado pela figura de Ogun. Apesar disso, os planos significativos representados por Ogun e Oxossi não coincidem de todo. Uma representação mais adequada do arranjo pode ser:

 

A colocação do euê-obó (Periploca nigrescens Afzel) um pouco mais abaixo não significa uma distinção hierárquica, mas uma indicação "cosmográfica": o euê obó (Periploca nigrescens Afzel) remete a uma dimensão que não coincide plenamente com a assinalada pelos conjunto significativo correspondente ao afefé (Trema micrantha (L.) Engler): em ambos os casos, há uma referência ao plano da terra, onde se ergue a floresta; porém a folha de Ogun/Oxum, por causa de Ogun, faz sinal de uma ligação com um domínio que apenas assim é evocado no dito contexto: Ogun tem a ver (também) com o interior da terra.

 

Uma variante das explanações míticas do cânon em exame confirma o dado da oposição Xangô x Oxossi: enquanto alguns de nossos consultores consideram o afefé (Trema micrantha (L.) Engler), uma planta de Oxum e Oxossi, outros há que a atribuem apenas a este deus (Oxossi). A variação tem paralelo numa outra que afeta um ponto diferente do mesmo sistema mítico-litúrgico: registrou-se a consagração do orirí (Piperomia pellucida L. Kunth) a Oxum e Xangô, mas é preciso também levar em conta o fato de que muitos a consideram uma planta de Oxum e Oxalá....

Seja o caso do testemunho que adscreve só a Oxossi o afefé (Trema micrantha (L.) Engler). Considere-se a representação abaixo:

 

Neste caso, além de Oxum, dois signos/Orixás constituem conjuntos (semânticos) unitários: Xangô e Oxossi . Ora, isto dá logo a perceber a relação particular que se estabelece entre eles: os dois se opõem, então, de um ponto de vista "topológico" (simbólico), visto como Xangô representa o domínio do fogo (e da luz) do céu, Oxossi o espaço (terreno) da floresta. Todos os consultores do candomblé frisaram que Oxossi tem uma importância muito grande, "na parte das folhas", por ser "do mato".

O mesmo dado ajuda a compreender uma outra ambigüidade aparente. Os cientistas tradicionais por nós consultados são unânimes em apontar a eminência de Xangô no sistema... e, ao mesmo tempo, em atribuir a Oxossi (e a sua folha), nesse mesmo contexto, um destaque especial, também "máximo". Por outro lado, não hesitam em dizer que é Oxum "quem manda nesse enredo"...

Não há contradição nessas afirmativas.

A dominação de Xangô explica-se em termos de tópos cosmológico/simbólico, e pela cadeia de valores associados ao domínio luz/fogo, relacionados ao télos da produção do rito, iniciático: a vida iluminada, afortunada... Já Oxossi, como é considerado um "dono do mato", vem a ser identificado com a floresta: resulta lógico dizer que ele "manda" no sistema das folhas, que "governa" esses dons selvagens... Por fim, não se pode eludir o fato de que Oxum é a grande mediadora, conectando todos os campos distintos nesse pequeno cosmo. Mesmo quando se exclui sua participação na posse do orirí (Piperomia pellucida L. Kunth) e do afefé (Trema micrantha (L.), fica evidente que os detentores dessas plantas (respectivamente Xangô e Oxossi) apenas entram em relação um com o outro, e se integram no sistema do euê jokó, através dela:

Se a variante que atribui o afefé (Trema micrantha (L.) só a Oxossi ajuda a compreender um aspecto da estrutura, tem grande valor a configuração apresentada primeiro: aquela em que essa folha é dada como pertencente a Oxossi também a Oxum. Há sólidas bases míticas para sustentar que Oxossi, no mundo de Ossain (o mundo vegetal), se apresenta "em clave de Oxum". Isso também tem a ver com a relação verificável entre os complexos significativos onde aparecem Oxossi e Ogun no sistema do euê-jokó. Para mostrá-lo, convém trazer à baila uma outra variante já evocada na definição dos valores litúrgicos das folhas: a que atribui o orirí (Piperomia pellucida L. Kunth) não a Oxum e Xangô, mas a Oxum e Oxalá. Ela pode ser representada e analisada assim:

 

Ou ainda deste modo:

No quadro supra, as folhas de Oxum e Oxalá operam a primeira intermediação entre o campo de Xangô e aquele onde se acham os Orixás caracterizáveis, no mesmo conjunto, como mais ligados à terra. Recorde-se que Oxalá tem a ver, nos contextos onde aparece com um significado "cosmográfico" particular, com o domínio dos ares e das águas supernas. Entre o domínio de Oxalá/Oxum e o de Oxum é evidente a ligação, também do ponto de vista cosmológico. Resta considerar os campos significados pelos conjuntos divinos Ogum/Oxum e Oxossi/Oxum. Já se chamou a atenção para as semelhanças que aproximam estes Ogum e Oxossi. Mas as diferenças entre eles são igualmente significativas. Embora Ogum também seja considerado um morador da floresta, Oxossi é mais profundamente identificado com as matas. Seu principal título vem a ser o de caçador. Ogum também se empenha na caça, mas não tem aí seu apanágio, e sim em outras artes, que transcendem o universo da floresta: a metalurgia e a agricultura. A metalurgia o coloca em relação com o seio da terra, com o domínio propriamente ctônico.

Vistas as coisas em conjunto, teríamos uma disposição cosmográfica dos signos onde, entre o domínio do fogo/luz (do céu) e o da terra situam-se o dos ares e o das águas, estas dispondo-se acima e abaixo, permeando tudo.

Uma outra variante do sistema do euê-jokó permite nova leitura, que talvez transpareça melhor a configuração dessa cosmografia: embora quase sempre as autoridades consultadas insistissem em apontar a preeminência da folha de Xangô (com base na teleologia do rito) outros insistiram em que as de Oxalá merecem o destaque máximo, em vista da posição superior deste deus na hierarquia dos Orixás, e por que assim se garante o predomíno das qualidades de "frieza", calma, paz, indispensáveis ao projeto iniciático.

Veja-se o esquema abaixo:

 

 

Neste caso, uma folha dominante é atribuída em primeiro lugar a Oxalá, depois a Oxum. Surge assim uma configuração mais simples, em que um plano superior corresponde ao domínio celeste (ar, águas do alto, fogo do céu) e o inferior ao domínio terreno da floresta, com as águas fluviais em posição intermediária.

É possível também uma outra representação, que destaca a centralidade da folha de Xangô, mas assinala melhor a preeminências de Oxalá e reforça a idéia da função conectiva "universal" de Oxum no sistema.

Veja-se o quadro abaixo:

 

Esta leitura é certamente válida, mas deve-se considerar diferenças também importantes para o sistema que não aparecem de imediato nesse modelo explicativo. Para isso, há que volver ao fundamento da oposição entre os campos semânticos onde Oxossi e Ogum figuram os traços distintivos, opondo afefé (Trema micrantha (L.) a euê-obó (Periploca nigrescens Afzel). Já é tempo de acusar uma simplificação aqui feita em obediência a uma regra seguida pelos mestres do candomblé. Até o momento, assinalamos que o euê obó (Periploca nigrescens Afzel) é considerado uma folha de Ogun e Oxum... Mas não dissemos tudo. Esta folha pertence também a Exu e Egun.

No seu emprego místico liminar, ou seja, na aplicação da folha chamada euê-obó (Periploca nigrescens Afzel) na liturgia iniciática, estes últimos patronos, Exu e Egun, não são mencionados: fala-se apenas de Ogun e Oxum. Há uma boa razão para isso: no horizonte do rito de iniciação, o grupo de valores rituais que informa o conjunto do euê jokó é, por definição, um arranjo de folhas de orixá; e de acordo com a teologia do candomblé nagô, Exu e Egun não pertencem a esse conjunto (antes constituem outros, que se lhe opõem). Portanto, no contexto do euê-jokó, o euê-obó (Periploca nigrescens Afzel) entra (só) como folha de Oxum e Ogun...

Mas ninguém ignora que ela tem ainda um outro alcance.

Em particular, a ligação com Egun e Exu refere essa folha ao domínio ctônico. Ogun o representa por ser um orixá capaz de estabelecer ligação com o interior da terra (logo, também com os mortos). Em diversos contextos, ele identifica-se com Exu. Assim, Ogum veladamente os dois "parceiros" que então oculta: indica uma passagem possível, uma abertura por onde o euê jokó se integra a um conjunto mais amplo, do qual vem a ser um subsistema cardial. A lógica da liturgia empresta um sentido muito importante às exclusões que faz. Elas não são absolutas, mas imprimem no contexto onde se operam uma ineludível marca. É preciso prestar toda a atenção aos silêncios expressivos do sistema.

Ao explicar a configuração do "cânon vegetal" elementar do euê jokó, um de nossos instrutores na etnociência nagô insistiu de maneira enfática na distinção entre o euê pepé (Spilanthes acmella (L.) Murr.) e o euê-xibatá (Nymphaea alba L.), acentuando a semelhança morfológica das duas plantas, mas sublinhando muito uma diferença que considerou essencial: lembrou que o euê pepê (Spilanthes acmella (L.) Murr.) é uma planta terrestre, e o euê xibatá (Nymphaea alba L.) uma planta aquática; identificou também esta última por seu nome vernáculo (popular), "baronesa". Precisou que é necessário cuidado para não as confundir, pois a confusão é possível (e nefasta) até quanto aos "valores" (litúrgicos) respectivos: ambas as folhas pertencem a Oxum, e cumprem papéis religiosos críticos... mas dá-se que o euê-xibatá (Nymphaea alba L.), segundo esta informação, não pode ser empregado na liturgia iniciática. É uma folha de Oxum que Oxalá rejeita, embora ele muitas vezes "compartilhe" plantas desta deusa... Sucede que Oxum a comparte de forma exclusiva com outro orixá, a rigor próximo de Oxalá, porém a ele oposto quanto a certos aspectos, em certos contextos: Iemanjá, a "rainha dos mares". O euê-xibatá (Nymphaea alba L.) vem a ser considerada uma folha essencialmente "salgada" (embora se recolha em águas doces), e por isso mesmo incompatível com Oxalá.

Adiante se voltará ao problema classificatório assim tangenciado... Importa primeiro fazer uma observação: embora excluída do cânon básico das folhas iniciáticas, a planta euê-xibatá (Nymphaea alba L.) vê-se então indiretamente apreciada, surge como em filigrana nesse micro-sistema, invertendo uma de suas "chaves" (o ponto assinalado pelo euê-pepê (Spilanthes acmella (L.) Murr.)). Graças a esta referência é possível entender o destaque de importantes grupos classificatórios... Há folhas que Oxalá comparte com Iemanjá (e Oxum), outras que "não aceita", embora Oxum e Iemanjá as partilhem. Por outro lado, verifica-se também que Oxalá partilha com Nanã certas plantas, e não outras... e ainda estas podem ser referidas a Oxum. Isto vem a ser uma indicação preciosa em termos de taxionomia. Voltando ao euê-xibatá (Nymphaea alba L.): é um dado fundamental sua exclusão enfaticamente declarada do campo do rito, e a alegação do motivo. Mas é preciso entendê-lo bem: o euê-xibatá (Nymphaea alba L.), no ponto exterior em que se coloca, em relação ao micro-sistema da liturgia considerada, tem um significado que assim mesmo se constrói: representa a "água salgada"... e evoca a morte. Isto foi indicado de maneira explícita pelos nossos consultores do candomblé.

Neste ponto, há outras dificuldades aparentes: primeiro, Iemanjá é quase sempre descrita como uma grande mãe, doadora de vida, e o sal que se origina dos seus domínios (do mar) tem reconhecida função terapêutica na etnociência dos terreiros. Segundo, a folha em apreço (euê-xibatá (Nymphaea alba L.)) não tem gosto salso nem relação empírica com o mundo marítimo... A atribuição é toda simbólica. A "baronesa", dizem os informantes, se relaciona com o poder mortífero das águas onde muitos se afogam, e de que ela esconde a perigosa inconsistência. A relação com a água salgada é secundária, faz-se a partir desta evocação primeira. Há mais... Recorde-se que no micro-sistema litúrgico analisado as folhas "de água" (de Oxum e de Oxalá) desempenham um papel decisivo, comunicando todos os pontos do conjunto, mediando as relações fundamentais. Ora, Oxum e Oxalá, que aí imprimem este significado, têm a ver com a água doce (da chuva, dos rios). Entende-se perfeitamente seu destaque, pois trata-se da geração de uma célula litúrgica através de um "quadro" vegetal. No mundo dos vegetais, a água doce tem função vivificadora indispensável; já a água salgada, desde este ponto de vista, é negativa, estéril, mortífera em vez de vivífica (para as plantas). Corresponde mesmo a uma "não-água". Nossos consultores esclareceram que Iemanjá, a rigor, não tem folhas suas próprias: nesse campo litúrgico ela só acha espaço por intermédio de Oxalá e Oxum, emprestando plantas deles. Ainda assim, algumas folhas lhe são particularmente afetas (a Iemanjá). Ela as comparte com Oxum, mas não com Oxalá, pois ao contrário de Oxalá, Oxum pode ter trânsito também em águas marinhas, desde quando "Há uma qualidade de Oxum (Apará) que também anda no mar..."

Os ritos da iniciação colocam o acento sobre a vida, e destacam os Orixás enquanto portadores de forças vitais. Este é um dos motivos do procedimento elíptico adotado na composição da "célula" litúrgica do euê-jokó. Ainda assim, esta célula permite compreender a estruturação do sistema etnofarmacobotânico maior, com que trabalha o candomblé nagô. No ponto limite onde comparece Ogun , associado a Oxum, identificando um dos elementos dessa liturgia, adverte-se uma encruzilhada fundamental: a rigor, todo o universo botânico se reparte, neste sistema, entre os domínios aí acusados. Ou seja, as folhas distribuem-se entre Orixás, Eguns, Exu (deuses, mortos, espírito comunicador). Por outras palavras, existem folhas de Orixá, folhas de Egun, folhas de Exu, e também as que se situam em espaços intermediários entre esses domínios, além daquelas que se podem relacionar com os três. Este grupo especial por vezes é indicado com a referência direta a Ossain. Isto se compreende: Ossain designa o universo vegetal assim repartido, o totum recortado pela divisão triádica Orixá -- Exu -- Egun.

Ossain é considerado "dono de todas as folhas": segundo enfatizam as autoridades religiosas do culto do candomblé, nada, no mundo vegetal, fica fora do domínio deste deus. Ele "compreende", no seu sistema, o conjunto das plantas referidas simultaneamente a Orixás, a Exu e a Egun. Na taxionomia etnobotânica em estudo, entre os campos correspondentes às três referidas categorias de patronos, encontram espaço classes intermediárias. Note-se que assim resulta um modelo onde sete domínios são discriminados, correspondendo a séries taxonômicas: 1. Orixá. 2.. Orixá/Exu. 3. Exu 4. Egun. 5 Egun/Exu. 6. Orixá/Egun. 7. Orixá/Egun/Exu (Ossain).

Isto confirma a coerência dos sistema com a cosmologia nagô.

Um dado axiomático de valor decisivo que se depreende do exame do pequeno sistema litúrgico do euê-jokó vem a ser a preeminência lógica de um dos conjuntos. A teo-cosmologia do candomblé nagô a justifica de modo bem claro: de acordo com um seu postulado básico, os Orixás são os mais importantes dentre os arà orun Do ponto de vista da taxionomia, isto se reflete no fato consabido de que os Orixás são os clasificadores fundamentais.

Os religiosos do candomblé procuram manter em silêncio os sacramentos relativos aos egun. As determinações litúrgicas correspondentes ao emprego das "folhas de egun" são fortemente tabuadas. Procede-se, em geral, como se este domínio fosse uniforme, esse campo indiferenciado — embora existam indicações em contrário. A rigor, é na intersecção com o campo dos Orixás que se esclarece melhor a configuração do domínio dos egun. Esta intersecção pode ser apreciada através do simples registro de adscrição, observando-se a ocorrência da atribuição ambígua; mas existe ainda um outro indicador importante: trata-se do que vamos chamar de "conjunto apotropáico". As folhas que o integram não são as únicas a ter função apotropáica, porém trata-se de um grupo claramente identificado e assinalado pela função de "apartar os maus espíritos", repelir os eguns considerados deletérios. Elas são identificadas por sua pertinência a distintos Orixás, mas também relacionadas, todas elas, com os eguns... embora negativamente.

O dado se afigura ainda mais importante quando se adverte que os componentes desse "grupo apotropaico" configuram uma família etnobotânica, claramente isolada por sua morfologia: a família dos peregun. A família dos peregun é composta exclusivamente por variedades de Cordyline terminalis (L.) Kunth (Agavaceae) e a repartição dessas plantas entre os orixás tidos como patronos se dá por traços morfológicos das variedades específicas relacionadas com características das divindades. Distinguem-se sete, um deles atribuído a Ossain, que centraliza o conjunto; os demais distinguem-se pela sua atribuição a três outras divindades masculinas e três femininas. Eles podem ser assim identificados e arranjados, segundo a referência a seus patronos:

Ogun, Iansã e Obaluaiê são divindades que se relacionam de forma direta com o reino dos mortos e têm o papel de apartar as almas dos defuntos errantes. A presença de Ossain neste conjunto corresponde a uma outra marcação de sua ubiquidade em todos os planos do sistema, inclusive nas suas faixas liminares. Compreende-se também que Oxossi, um orixá da mata (capaz também de representá-la) a ecoe, fazendo do grupo, com esta associação, um modelo reduzido do universo vegetal; e no mesmo sentido se justifica a presença de Oxum, que muitos fatores aproximam de Ossain. Tem uma significatividade inequívoca o eixo

O que intriga,à primeira vista, é encontrar a figura divina de Oxum "desdobrada" no par Oxum -- Oxum Apará. Mas o desdobramento é significativo. Ele mostra a "mobilidade" do signo que aparece constantemente como conectivo no sistema. Segundo o povo do candomblé, algumas características marcantes de Oxum Apará a distinguem "das outras Oxum", a saber: seu caráter guerreiro, armas e hábitos que a aproximam de Iansã -- tanto que Oxum Apará chega a ser freqüentemente confundida com esta deusa -- e ainda sua relação com o mar.

A semelhança acusada com a Rainha dos Mortos e a ligação com o domínio da água salgada (que, neste contexto, ela "aproxima" perigosamente do mundo vegetal) a colocam em relação indireta com a esfera da morte. Entende-se: o apotropaico é necessariamente ambíguo, tem sempre a ver com o que repele.

Eis agora um outro dado muito importante: entre as folhas de Exu apresenta-se um grupo paralelo a este, também composto por uma família etnobotânica e com igual número de elementos: A Famíla dos gravetos, composta em sua totalidade por cactáceas e euforbiáceas. Segundo os especialistas tradicionais, a junção destas plantas no grupo se dá pelas semelhanças morfológicas comuns a todos os integrantes: nesse caso, presença de látex cáustico e espinhos – que acaba por remeter o conjunto ao arquétipo atribuído ao santo patrono: EXU. Destaca-se no grupo o chamado "graveto do cão" (Euphorbia tirucalli L.), usado também em aplicação direta, para tirar verruga; os especialistas sempre recomendam o máximo de cuidado no seu emprego pois qualquer descontrole pode causar danos irreversíveis à derme tratada, dado o poder cáustico do latéx desta planta. Como sucede com o dos peregun, o grupo dos gravetos tem valor emblemático: sua configuração representa, em tese, a configuração do universo das folhas de Exu.

O paralelismo é visivelmente buscado como uma forma (proposta) de organizar o sistema segundo um arranjo simétrico de seus campos: recorde-se que a mesma base de sete elementos tem o conjunto mínimo a partir do qual as folhas de orixá são ordenadas.

 

Quem estuda a etnofarmacobotânica nagô, vê-se logo confrontado com uma espécie de "modelo ideal" que distribui de forma ordenada, paritária e simétrica, com um desenho lógico constante, os elementos do universo das folhas. Os especialistas dos terreiros estão conscientes do fato de que este modelo não representa uma "tradução" exata e exaustiva dos dados empíricos verificáveis no mundo vegetal, que eles não consideram plenamente conhecido. Acreditam que podem mapeá-lo com as categorias de que dispõem, mas consideram que elas se aplicam, antes de mais nada, a um conjunto limitado, a um repertório que dominam e exploram de forma sistemática. Muitas vezes empenham-se na busca de uma ampliação desse repertório: ao contrário do que muitos imaginam, os especialistas tradicionais também pesquisam. Os pontos de referência que tomam para a construção de seu sistema estão dados sempre numa liturgia das folhas, com itens que elegem. Mas os elementos dessa liturgia podem variar... e, em certa medida, variam mesmo, " até de uma Casa para outra". A liturgia estabelece valores que são combinados a funções (religiosas e terapêuticas em sentido amplo), explorando correspondências entre os distintos domínios do cosmo. A grade assim constituída é o principal instrumento de classificação, sobrepondo-se ao arranjo das famílias etnobotânicas reconhecidas. A estrutura básica mantém-se, apesar de todas as variações.

 

É tempo de volver à célula da liturgia do euê-jokó. Abstraindo-se as folhas em si, facilmente se vê que ela pode ser construída com o traçado de relações entre os campos simbólicos designados por cinco Orixás: (As folhas "principais" na definição do cânon distribuem-se entre eles de modo a compor sete elementos).

 

Ora, esse conjunto canônico pode ser expandido de modo a referir sete Orixás (formando um conjunto de nove folhas), com a inclusão de Ossain e Iroko -- o que se obtém com o acréscimo de uma folha capital chamada euê ossain e das folhas da árvore Iroko (Ficus sp.) Estes dois novos campos simbólicos representam claramente pólos do pequeno sistema assim erigido. Ossain representa o ponto mais inclusivo, pois, embora ele aí compareça com uma folha exclusiva sua, todas as demais (todas as folhas, a rigor) podem ser consideradas euê ossain -- visto como todas (também) lhe pertencem. Iroko, pelo contrário, apresenta-se como o possuidor de uma única planta, aquela que o "encarna"...

 

 

A expansão do sistema segue ainda outra linha. Segundo já se viu, Iemanjá pode ser incluída no universo das folhas apenas através de Oxalá e Oxum, a meio caminho entre eles. Ora, este ponto intermédio, segundo os informantes explicitam, é representado pela "qualidade de Oxum" conhecida como Oxum Apará. Uma transformação (lógico-simbólica) de Oxum, do signo Oxum, abre espaço para a inclusão de Iemanjá.

 

Pois bem: recorde-se o que acontece no sistema do peregun (Cordyline spp.): Oxum "desdobra-se", aí, tanto na figura significada por sua epiclese, e definitiva de uma sua "qualidade", como na figura homóloga de Iansã (com quem, segundo se viu, Oxum Apará chega muitas vezes a confundir-se). Por sinal, os mitos atribuem não apenas a Oxum, mas ainda a Iansã um papel importantíssimo na constituição do sistema de Ossain, isto é, na distribuição dos dons vegetais entre as divindades: Ossain era o único possuidor de folhas, que guardava numa cabaça, fruto da cabaceira (Lagenaria vulgaris (Molina) Standl – Cucurbitaceae) ; instigada por Xangô, seu marido, Oiá/Iansã, a tempestuosa, aproximou-se dançando da cabana do mago e, num rodopio, provocou o vento, que dispersou as folhas. Todos os Orixás aproveitaram então para recolher algumas... Ossain ainda conseguiu reter a grande maioria delas; porém daí por diante os outros deuses tiveram sua parte no seu tesouro.

Oxum representa, no eixo do sistema, o poderoso conjunto das Grandes Mães, das augustas senhoras coletivamente chamadas de Iyá Mi, com uma reverência que traduz o temor a seus poderes mágicos: é Oxum a figura singular que representa este coletivo, em muitos contextos mítico-rituais; é também ela quem governa as ajé, as grandes feiticeiras: vem a ser, portanto, uma Senhora das bruxas.. Este traço a identifica com Ossain, considerado o maior dos feiticeiros. A relação de Ossain com as Iyá Mi só se mostra efetivamente harmônica quando elas são representadas por Oxum. Um mito fala da oposição entre Iemanjá e Ossain, que, de certo modo, lhe arrebatou os filhos, Oxossi e Ogun: apesar das advertências da mãe divina para que não se embrenhasse na floresta onde morava o grande feiticeiro, Oxossi aí foi ter, em busca de caça; deparou então Ossain, que o embriagou e o seduziu, vestindo-o de mulher. Indignada com a desobediência do filho, Iemanjá não o quis receber de volta em sua casa; por isso Oxossi voltou para floresta. Solidário com o irmão, Ogun o acompanhou e lhe fez aí uma cabana, passando a morar também nesses domínios.

A relação de Ossain com as Iyá Mi dá-se sob signos bem diferentes: é inteiramente positiva e equilibrada apenas no que concerne a Oxum. Esta parece ser a razão pela qual Oxum de fato centraliza o sistema de Ossain; a interação deste deus com Iemanjá e Iansã é marcada por desequilíbrios: ele priva Iemanjá dos filhos, e é privado por Iansã do monopólio das folhas.

De qualquer modo, no sistema de Ossain, Oxum define um plano em que vêm a situar-se, também, outras Grandes Mães.

Já se explicou aqui a posição "deslocada" de Iemanjá com respeito a esse horizonte; por outro lado, percebe-se facilmente a lógica do posicionamento de Iansã, entre Xangô e Ogun, deuses com os quais mantém relações muito próximas: segundo os mitos, ela foi mulher de Ogun e depois o abandonou para casar-se com Xangô; mas também se conta que levou a Ogun o fogo de Xangô. Por outro lado, Oiá (Iansã) é uma senhora das águas, como Oxum; e tem poderes sobre a ventania...

No extremo oposto, vem a situar-se a "mais antiga das mães d’água", que todavia tem relação íntima com a terra, e frequentemente a simboliza: dona da lama, matriz da vida, Nanã é também a que consome os mortos.

Os extremos se tocam:. enquanto Rainha de Bale, Oiá tem a ver com este domínio, com as entranhas da terra.

As outras deusas ninfas (Euá, Obá) que se integram a este conjunto posicionam-se aí segundo as suas afinidades cósmicas e as relações que mantêm com os Orixás próximos.

 

O quadro completa-se facilmente segundo indicações mítico-litúrgicas precisas. Os Ibeji, os gêmeos divinos, são considerados filhos de Xangô e Oiá, posicionando-se sempre entre eles, em importantes contextos religiosos. Obaluaiê e Oxumarê, os divinos filhos de Nanã, compartem entre si, e com ela, diversos sacramentos. Em conjunto, eles formam o grupo da terra, um subsistema nesse modelo cosmológico. Obaluaê tem mais a ver com as profundezas ctônicas, enquanto Oxumarê, considerado senhor do arco-íris, faz a ligação entre a terra e o céu. Este último tem ainda um papel muito importante por sua natureza ambígua, que o relaciona com os domínios contrapolares e se traduz em sua bissexualidade; o caráter ambíguo o aproxima também de Euá.

Numa posição mais ou menos simétrica à de Oxumarê encontra-se Logun-Edé, igualmente qualificado de metá-metá (dúplice): pertence às águas e ao mato, é um caçador e uma ninfa -- em tempos complementares e reversos, num contínuo ciclo de transformações -- "metade do ano é um homem valente, metade do ano é uma moça"... tal qual sucede com o Senhor do arco-íris. Logunedê tem a ver com uma viragem decisiva: aquela que leva de Oxum a Oiá, e permite o retorno, reunindo as duas grandes deusas cuja relação com Ossain leva o sistema a seu acabamento. Isto se acha bem esclarecido não só nos mitos que as mostram interagindo com o deus vegetal, mas também num outro, que versa sobre a origem de Logunedé: conta-se que ele nasceu dos amores de Oxum e Oxossi, mas foi criado, até a idade de sete anos, por Ogun e Oiá, passando outros nove com os pais verdadeiros. Ele comparte folhas de todos esses Orixás, e de certa forma os "reune". Note-se que ele recapitula as cifras cosmológicas: criado pelo deus Sétuplo e pela deusa "dividida em nove", ele reparte sua infância entre dois períodos que correspondem a estes números, cujo total equivale ao número dos Orixás envolvidos no conjunto em apreço.

 

O diagrama ainda não está completo. Como sucede no Sistema de Ifá, Este só funciona com o acréscimo de mais um elemento que lhe é exterior e quebra-lhe a paridade. Evidentemente, este elemento é representado por Exu.

 

O quadro descrito representa uma matriz fundamental para a codificação das folhas no candomblé. Trata-se de um sistema primariamente farmacobotânico: por vezes distribuem-se nos campos assinalados por diferentes Orixás plantas reconhecidas como pertencentes a uma mesma família etnobotânica, em vista da analogia funcional encontrada entre as distintas folhas, enquanto elementos de liturgia e terapia. Neste sistema, os vegetais são classificados em função dos efeitos que produzem quando utilizados como símbolos e/ou como fármacos. Superpõem-se uma representação cosmológica e uma farmacologia a uma percepção das formas de vida vegetais. Trata-se, a rigor, de uma taxonomia de terceiro grau. A organização "do sistema de Ossain" procura replicar ao "sistema de Ifá"; os valores simbólicos que a liturgia define e os mitos ilustram servem também de parâmetro para a organização dos dados de experiência pertinentes a usos terapêuticos.

Vale esclarecer que os especialistas do candomblé entendem a terapia de uma forma abrangente: a cura com emprego de vegetais pode ser obtida, segundo admitem, pela operação simbólica dos ritos e/ou pelo efeito "medicinal" das plantas. Eles distinguem de forma explícita entre o valor terapêutico-simbólico e o correspondente à eficácia física dos itens, mas servem-se dos parâmetros litúrgicos para ordenar seus conhecimentos farmacológicos.

O Projeto Ossain inventariou um acervo de cerca de cento e cinqüenta vegetais do repertório das folhas do candomblé nagô, recolhendo a maioria delas ao Herbário Alexandre Leal Costa (UFBA) e catalogando todas, de modo a constituir o núcleo de um sistema de informações onde é possível identificá-los e estudá-los segundo os parâmetros científicos e os do saber tradicional que os tem registrado e pesquisado há séculos. Reconheceu-se a matriz estrutural da classificação e da ordenação desses elementos. O código analisado permite o mapeamento do campo etnocientífico considerado e constitui a base sobre a qual se pode erigir um estudo sistemático da etnociência do candomblé nagô. Este código guarda relação com outros cujo estudo se impõe para a compreensão mais plena da referida etnociência. Nesta pesquisa, priorizou-se a abordagem do núcleo ordenativo do conhecimento tradicional enfocado, melhor caracterizável como uma etnofarmacobotânica. O candomblé nagô atribui às folhas utilizadas pelos seus especialistas poderes que as tornam capazes de restaurar e conservar a saúde, de promover o bem estar das pessoas. Enfermidades e infortúnios se equiparam na medida em que causam desconforto, considerado passível de tratamento. As folhas permitem remover esse desconforto. Podem também causar danos... Têm a eficácia ambígua de fármacos. O candomblé nagô caracteriza e ordena as folhas em função desses poderes. Elas podem ser usadas em terapias nas quais funcionam através de uma ação direta — quando o corpo do paciente as absorve (por ingestão ou aplicação, etc.) — ou de modo indireto — quando se considera que o contacto não leva à sua absorção física (em certos casos, o contacto pode até ser dispensado, as folhas não precisam nem mesmo ser tocadas pelo paciente para que exerçam seu poder sobre ele, bastando a proximidade: o peregun apotropaico, por exemplo, funciona assim). O alcance da ação direta das folhas sobre o corpo do paciente pode ser limitado a certos órgãos ou ainda ser difuso, agir sobre ele todo. Neste último caso estão as folhas que "limpam o corpo", que "purificam a pessoa", exercendo um efeito catártico e profilático geral; também têm este amplo alcance terapêutico as folhas às quais se atribui o poder de controlar estados de perturbação que em si mesmos não são necessariamente malignos, mas que podem, se não forem limitados, causar dano ao sujeito: elas "controlam" o transe, por exemplo, ou limitam crises e distúrbios cuja remoção imediata não seria possível (ou mesmo desejável: a crise asssim tratada pode ser considerada uma passagem necessária ao reequilíbrio da pessoa, e benéfica se controlada) . Entre as folhas que se aplicam de forma direta ao corpo do paciente, muitas têm sua ação relacionada de forma particular a um órgão ou região anatômica, cujo bom funcionamento elas são consideradas capazes de promover ou restaurar, agindo de forma curativa; algumas são estimadas capazes de estimular faculdades ligadas a determinados órgãos, removendo barreiras que limitam a percepção e a expressão dos não iniciados: são reveladoras , permitem que se amplie os poderes da visão, da audição, da fala. As folhas que se usam no candomblé como recursos de uma terapia "indireta" são consideradas eficazes em dois sentidos principais: no sentido aversivo, visto como se supõe que afastam o mal, o infortúnio, a doença, a aflição, impedindo que perturbações atinjam a pessoa. Para dizê-lo numa palavra, essas folhas são apotropaicos. Outras, embora não ajam de forma direta sobre o corpo do paciente, se conservadas na sua proximidade, atraem para ele, segundo se acredita, o bem estar, a saúde e a fortuna, propiciando o orixá. Para dizê-lo numa palavra, são propiciadoras. No quadro abaixo, mostramos como essas caracterizações êmicas se aplicam a um pequeno conjunto que fornece uma chave para a leitura do universo das folhas do candomblé. As categorizações correspondentes são resumidas em palavras que elegemos porque, embora não sejam as empregadas pelos usuários do sistema, resumem de forma sintética expressões por eles usadas para distinguir as categorias em questão, expressões cuja extensão e variação não permitem sua utilização numa tabela como esta.

 

Quadro analítico das atribuições êmicas de valores de eficácia terapêutica ligados às "folhas"

 

Nome comum (no dialeto do candomblé) Nome científico Familia  Patrono Ação direta Ação indireta
Alcance Geral Alcance Particular Apotropáico Propiciatório
Controlador Catártico Revelador Curativo

Orirí

Piperomia pellucida (L.) Kunth

Piperaceae

Oxalá/Oxum/Iemanjá

 

X

 

Olhos

Coração

 

X

Euê pepe

Spilanthes acmella (L.) Murr.

Asteraceae (Compositae)

Oxalá/Oxum

 

X

 

Boca

 

X

Afefé

Trema micrantha (L.) Engler

Ulmaceae

Oyá/Xangô

X

   

Estomago

Fígado

 

X

Euê obó

Periploca nigrescens Afzel.

Asclepiadaceae

Oxossi e Ossain

   

Ouvido

Ouvido

 

X

Macaça

Aeolanthus suaveolens Spreng.

Lamiaceae

Oxalá/Oxum/Iemanjá

 

X

 

Sistema Nervoso

 

X

Semi-semi

Scoparia dulcis L.

Scrophulariaceae

Oxum/ Yemanjá

 

X

 

     

X

Akokô

Newbouldia laevis Seem.

Bignoniaceae

Ogum

     

Coração/ Pulmão

 

X

Iroko

Ficus sp.

Moraceae

Iroko

 

       

X

X

Euê-xibatá

Nympheae alba L.

Nymphaeaceae

Oxalá/Iemanjá/Oxum

 

X

 

Olhos

Olhos

 

X

Peregun

Cordyline terminalis (L.) Kunth

Agavaceae

Ogum

 

X

 

Articulações

X

X

 

 

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